quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Cabo Verde: três décadas de economia à luz da Constituição e da praxis governativa (VIII)

A Constituição Económica de 1992
A Constituição de 1992 representa um momento de ruptura com a ordem constitucional vigente até 1990, tanto na esfera política como na esfera económica. A Constituição de 1992 “consagra um Estado de Direito Democrático com um vasto catálogo de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, a concepção da dignidade da pessoa humana como valor absoluto e sobrepondo-se ao próprio Estado, um sistema de governo de equilíbrio de poderes entre os diversos órgãos de soberania, um poder judicial forte e independente, um poder local cujos titulares dos órgãos são eleitos pelas comunidades e perante elas responsabilizados, uma Administração Pública ao serviço dos cidadãos e concebida como instrumento do desenvolvimento e um sistema de garantia de defesa da Constituição característico de um regime de democracia pluralista”.
Ao definir que o Estado deve garantir as condições de realização da democracia económica, assegurando “a igualdade de condições de estabelecimento, realização e concorrência de todos os agentes económicos, privados e públicos”, de uma só vez, caem por terra os princípios fundamentais da Constituição económica de 1980, quais sejam: (1) o controle pelo Estado dos sectores básicos da economia, (2) a propriedade do Estado como sector dominante da economia, e (3) a reserva pública de sectores da economia nacional. O dispositivo constitucional citado diz em substância que todos os agentes económicos se encontram nas mesmas condições, ou seja, que a nenhum é conferido qualquer poder ou prerrogativa especial na esfera económica.
Ora, isto é exactamente o oposto do que estatuía a Constituição de 1980, que atribuía à propriedade do Estado o papel dominante na economia, em detrimento da propriedade privada. Estando todos os agentes económicos em pé de igualdade, então não pode o Estado arrogar-se o direito de atribuir aos agentes do sector público o domínio sobre nenhum sector da economia, nem pode limitar o acesso dos agentes económicos privados a nenhum sector da economia.
Iniciativa privada
Com a Constituição de 1992, a iniciativa privada passa a ter dignidade idêntica à da propriedade pública, podendo exercer-se em qualquer ramo ou sector da economia nacional, sem discriminação. Acaba, assim, a delimitação de sectores imposta em 1980, e a discriminação até então vigente em relação à propriedade e iniciativa privada. Ou seja, acaba definitivamente o monopólio do Estado sobre “… as fontes de energia, os meios básicos de produção industrial, os meios de informação e comunicação, os bancos e seguros e as infra-estruturas e os meios fundamentais de transporte”, no dizer da Constituição de 80.
Na ruptura com os princípios económicos da década de 80, a Constituição de 1992 reconhece o papel da iniciativa privada que deixa de ser relegado para um papel marginal na economia. O texto de 1992 confere dignidade constitucional à iniciativa privada, reconhecendo explicitamente a todos “o direito à livre iniciativa privada” e o direito de “criar empresas e cooperativas”.
A revisão de 1999 exprime com mais clareza a liberdade da iniciativa privada: “A iniciativa privada exerce-se livremente no quadro definido pela Constituição e pela lei”.
Direito à propriedade
A Constituição de 1992 garante expressamente a todos “o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte.” Ainda em defesa da propriedade privada, a Constituição de 1992 reconhece a possibilidade de requisição e expropriação por utilidade pública, mas apenas com base na lei e mediante justa indemnização.
Abertura da economia
O texto de 1992 afasta implicitamente o princípio de 1980 de criação de uma “economia nacional independente”. Pelo contrário, aponta em sentido inverso, impondo ao Estado a obrigação constitucional de apoiar os agentes económicos nacionais na sua relação com o resto do mundo, e de modo especial os agentes e actividades que contribuam para a inserção de Cabo Verde na economia mundial. Esta perspectiva contrasta frontalmente com a ideia até então prevalecente de desenvolvimento “virado para dentro”. Na realidade, a abertura ao exterior passa a ser uma das ideias força do modelo de economia dos anos noventa.
A Constituição de 1992 dá um passo adicional na abertura do país ao exterior, ao assumir perante o investimento externo uma postura bem mais positiva do que a Constituição anterior. O investimento externo é bemvindo e, mais do que isso, o Estado passa a incentivar e apoiar o investimento externo. O Estado não se limita a “tolerar” o investimento externo, mas tem agora uma atitude pró-activa; atrai o investimento externo, cria incentivos e apoia a acção dos investidores externos. Trata-se de uma mudança muito importante que teve reflexos na acção governativa e na economia do país a partir de meados dos anos 90, até hoje.
Sistema financeiro
Os sistemas financeiros, fiscal e o Orçamento fazem a sua entrada no texto constitucional, já que a Constituição de 1980 não tratou estas matérias.
A Constituição atribui ao sistema financeiro o papel de “formação, captação e aplicação de poupanças” em favor do desenvolvimento económico.
Constitucionalizam-se as funções principais do Banco Central, o qual detém o exclusivo da emissão de moeda, e “colabora na definição e execução das políticas monetária, financeira e cambial”. Nota-se aqui uma primeira preocupação em definir a posição do Banco Central em matérias de política económica, concedendo-lhe um nível de autonomia, que se deve considerar ainda relativamente restrito. O Banco Central colabora na definição e execução das políticas monetária, financeira e cambial.
O Banco Central ganhou maior autonomia com a revisão de 1999.
De acordo com o texto vigente, o Banco Central continua a colaborar na definição das políticas monetária e cambial, mas passa a executá-las de forma autónoma. Ou seja, a execução das políticas monetária e cambial é retirada da esfera governamental, passando para a responsabilidade exclusiva do Banco Central.
Sistema fiscal
No sistema fiscal assiste-se a uma ruptura com o modo de encarar a questão fiscal até 1990. Retira-se ao poder executivo qualquer veleidade de legislar nas questões essenciais relativas aos impostos, tal como acontecia anteriormente, e definem-se alguns dos princípios básicos nesta maté ria. Os objectivos do sistema fiscal são, no dizer do texto de 1992, (1) a satisfação das necessidades financeiras do Estado, (2) a realização dos objectivos da política económica e social do Estado, e (3) a justa repartição dos rendimentos e da riqueza. Diz a Constituição que “os impostos só podem ser criados por lei, a qual deve determinar os elementos essências do imposto, especificamente, a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes”. Para reforçar a importância dos impostos, a Constituição de 1992 estabelece a exclusividade e absoluta responsabilidade da Assembleia Nacional nessa matéria, o que significa que em circunstância alguma pode o executivo legislar sobre os elementos essenciais dos impostos, muito menos criar impostos. Rompe-se assim com a prática anterior, consagrada na Constituição de 1980, que permitia à Assembleia conceder autorização legislativa ao Governo para legislar sobre impostos. O texto de 1992 consagra o direito dos cidadãos a “recusar o pagamento de impostos que não tenham sido criados nos termos constitucionais ou cuja liquidação e cobrança seja feita fora dos termos da lei”. Consagra ainda a não retroactividade da lei fiscal, e impede o aumento das taxas dos impostos ou alargamento da base de incidência destes num mesmo exercício económico. Em finais do ano de 1992, pela Lei n.º 37/IV/92, veio a ser aprovado pela Assembleia Nacional o Código Geral Tributário, onde de uma forma mais ampla e generalizada se estatuíram todos os princípios gerais tributários, salientando-se a definição programática da reforma da tributação do rendimento.
Estabelece-se que o imposto sobre o rendimento pessoal visará a diminuição das desigualdades e será único e progressivo tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar. Por outro lado, a tributação das empresas incidirá fundamentalmente sobre o rendimento real. O modelo constitucionalmente consagrado é, assim, o da tributação única, ao invés do sistema parcelar de imposição que vigorava até então. Quanto às empresas, a determinação da matéria colectável deveria ser efectuada através dos elementos contabilisticamente declarados, afastando-se à partida a tributação presumida, só usada em algumas circunstâncias específicas.
Planeamento
O texto de 1992 exige ao Estado que promova a participação dos grupos sociais e económicos na elaboração e avaliação dos planos de desenvolvimento. Diz no artigo 92º, que “O desenvolvimento económico e social de Cabo Verde é orientado por um plano nacional de carácter indicativo …” e atribui ao Governo a responsabilidade de elaboração do Plano e das Grandes Opções do Plano para aprovação da Assembleia Nacional.
Embora continue a Constituição a exigir a elaboração de um Plano Nacional de Desenvolvimento, o Plano deixa de ser imperativo para o sector público, como era exigido na Constituição de 80, para ser meramente indicativo para todos os agentes económicos. Esta posição é mais próxima dos princípios fundamentais da liberdade económica, e sobretudo leva em conta a realidade do país em termos de capacidade de financiamento do investimento público. A revisão constitucional de 1999 veio eliminar esta ambiguidade, dando o toque final ao liberalismo económico da Constituição de 1992 ao tornar facultativa a elaboração do Plano: “O desenvolvimento económico e social pode ser orientado por planos de médio prazo e de carácter indicativo”.
Regulação
Impõe a revisão constitucional de 1999 a obrigatoriedade do Estado assegurar a regulação do mercado e da actividade económica.
Contrariamente à ficção sobre o significado do liberalismo económico, não há contradição entre a liberdade económica, a predominância do mercado e sua regulação pelo Estado. A economia de mercado fundamenta-se na liberdade de troca e nos consequentes mecanismos institucionais que garantem a confiança nas relações contratuais, explícitas ou implícitas, como sejam: direitos de propriedade, regulação económica, concorrência e primado da lei. O quadro institucional e as instituições, garantidos pelo Estado, são portanto fundamentais para um bom ambiente de negócios, para a economia do mercado e para o crescimento económico. Ao contrário do que muitas vezes se faz circular, a economia de mercado e liberal não dispensa o poder do Estado, pois compete ao Estado a função de assegurar a governação das relações contratuais e garantir os arranjos institucionais e políticos que suportam a confiança entre os agentes económicos. A democracia constitucional e liberal limita sim o poder do Estado e faz com que o poder político e o seu exercício se confinam ao quadro constitucional e reduz o intervencionismo na economia. É esta a opção que a Constituição de 1992, revista em 1999, consagra.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Cabo Verde: três décadas de economia à luz da Constituição e da praxis governativa (VII)

Novo paradigma
A década de 90 marca o “advento da democracia, da globalização e do capitalismo global”, com a reunificação da Alemanha (1990), a adopção de regimes democráticos nos países do Pacto de Varsóvia que se seguiu ao colapso da União Soviética, o fim do Apartheid (1990); com a mobilidade de capitais e do comércio internacional, à escala mundial, orientada para novos espaços (leste europeu) antes “fechados” e a emergência da plataforma da Internet e da Web a partir de meados dos anos 90, o que permitiu o “desenvolvimento de uma “bolha” especulativa em todo o mundo, com uma circulação financeira jamais vista30”, o que permitiu que o mercado de divisas, a nível mundial, seja hoje 10 vezes superior ao da economia real.
Samuel Huntington (1994), cientista político americano, chamou a esse grandioso movimento contagiante de democratização, a “terceira vaga da democracia”. Os elementos mais salientes que enformavam o momento, são o fim das utopias totalitárias, designadamente do comunismo, e o reconhecimento da universalidade dos direitos humanos e da democracia.
Em inícios da década de 90, muitos economistas que se dedicam à problemática do desenvolvimento estavam convictos que uma utilização mais eficiente dos recursos despoletaria o crescimento económico. Essa maior eficiência requereria a redução do papel do Estado na economia. Era também convicção que as reformas deveriam ser rápidas com argumentos a favor do “big bang” e do “shock treatment” a ganharem proeminência comparativamente às estratégias de reformas gradualistas. É nesse contexto que a Federação Russa, os países da Europa do Leste e da Ásia Central reconstroem as suas economias na base dos prinípios do mercado, da liberalização do comércio e da privatização; a China continua as reformas iniciadas em 1978 liberalizando e abrindo mais a sua economia; a India acelera a liberalização iniciada na década de 80; países da América Latina como o Brasil, a Argentina e a Bolívia introduzem programas radicais de reforma económica visando reduzir a hiper-inflação; vários países da África adoptam programas de reestruturação do sector público, privatização e liberalização comércio (Banco Mundial, Economic Growth in the 1990s).
Apesar de países como a China e a India, países do Sudeste Asiático e alguns países da África terem crescido de forma rápida, uma das lições da década de 90, segundo o Banco Mundial, é que as políticas focalizadas nas reformas dessa década conduzem a um melhor uso da capacidade produtiva existente mas não proporcionam suficientes incentivos para a expansão dessa capacidade. Sublinha assim, a necessidade de, para além do uso eficiente dos recursos, desenvolverem-se transformações estruturais, diversificar a produção, proporcionar um ambiente favorável e incentivos à tomada de risco por parte de investidores, corrigir as falhas do mercado e de funcionamento do Estado e mudar políticas públicas e instituições, num processo que também exige transformações sociais (Banco Mundial, Economic Growth in the 1990s).
O papel das instituições para a prosperidade da economia ganha particular importância. Protecção de direitos de propriedade, adequadas estruturas de regulação, qualidade e independência do sistema judicial e capacidade da administração pública, são tidos como pré-condições essenciais e determinantes para o crescimento económico e sua sustentabilidade, embora não seja propriamente uma “lição” específica da década de 90. Sob diferentes perspectivas, Adam Smith, Karl Marx e Max Weber, sublinharam o papel das instituições no desenvolvimento da economia de mercado e na formação da sociedade capitalista (Banco Mundial, Economic Growth in the 1990s).
A abordagem do papel do Estado na economia sofre alterações relativamente à ortodoxia neoclássica: (1) a intervenção do Estado deve ser complementar e “amiga do mercado” (market friendly), no sentido em que o Estado deixa o mercado funcionar a não ser que a vantagem da intervenção seja claramente melhor; fiscaliza e harmomiza submetendo a sua intervenção à disciplina dos mercados internacionais e domésticos; e intervém de forma simples, transparente e sujeito a regras; (2) intervenções selectivas do Estado alterando os incentivos do mercado, podem beneficiar o seu funcionamento influenciando positivamente o comportamento dos agentes económicos32; (3) o Estado é central para o desenvolvimento económico e social, ressaltando a importância da qualidade e da eficácia da governação.
A década de 90 foi marcada pela redução da Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) depois de a mesma ter duplicado entre 1969 e 1991. Apesar do elevado volume de APD34, muitos países receptores viram baixar o seu PIB per capita entre 1980 e 2000. Desde 1980, o apoio dos EUA ao desenvolvimento atingiu 167 bilhões de dólares, beneficiando 156 países. Desses, noventa e sete baixaram o seu PIB per capita, ajustado da inflação, de $1.076 em 1980 para $994 em 2000.
A tese do Modelo Harrod-Domar de que o crescimento económico é proporcional ao volume de investimento em capital (máquinas e infraestruturas) orientou a APD através de “aid to investment to growth”. Um modelo assente num grande erro, como afirma William Easterly. O investimento em capital físico e sua acumulação pode ser considerado uma condição necessária para o crescimento económico, mas não é uma condição suficiente e é aqui que os países falham. Os múltiplos factores que afectam o crescimento (tecnologia, capital humano e capital organizacional) fazem com que a relação entre o crescimento económico e o investimento seja instável e se possa perder. Incentivos e expectativas são fundamentais para o crescimento económico. As pessoas respondem a incentivos e ge rem expectativas (Easterly 2001). Para isso precisam de um ambiente político, económico, social e organizacional favorável que não se compadece com a corrupção, sérios constrangimentos à liberdade e à democracia, fragilidade das instituições e dificuldades em fazer funcionar a autoridade do Estado, tensões sessionistas e conflitos violentos, situações que têm afectado negativamente a democracia e o desenvolvimento na África Sub-sariana.
Estudos recentes do Banco Mundial (2006)confirmam que o capital intangível (capital humano, as habilidades e o conhecimento incorporados na força de trabalho, o capital social, a qualidade das instituições) é preponderante na criação da riqueza das nações; daí é que advém a maior parte da riqueza de um país. Esses estudos demonstram que, quanto mais desenvolvidas são as economias, menos elas dependem dos recursos naturais e mais utilizam os chamados capitais intangíveis. A importância relativa do capital intangível na criação da riqueza é de 59% nos países de baixo rendimento, 68% nos países de rendimento médio e 80% nos países de elevado rendimento (OCDE).
Por outro lado, os recursos naturais têm uma maior importância relativa nos países de baixo rendimento (26%) do que nos de elevado rendimento (2%).
A década de 90 marcou também um grande incremento no Investimento Directo Estrangeiro (IDE), dirigido essencialmente aos países desenvolvidos (EUA, Europa e Japão). A introdução do euro, eliminando as volatilidades e os riscos associados à taxa de câmbio, contribuiu significativamente para acentuar esse incremento. Assistiu-se a “uma nítida aceleração do processo de integração dos mercados financeiros em virtude da globalização mas também da implementação de um enquadramento regulamentar comum e da passagem ao euro. Mais de 50 países ligaram a sua moeda ao euro através, entre outros, de um regime cambial de flutuação controlada ou de tipo “currency board”. Esses países situam-se predominantemente na Europa e na África, e são motivados por laços comerciais, financeiros ou pelo processo de adesão à UE”.
Cabo Verde soube acompanhar a nova dinâmica mundial que a década de 90 trouxe: a 13 de Janeiro de 1991 abraçou a democracia constitucional liberal, configurada pela Constituição de 1992; assumiu a liberdade e a dignidade da pessoa humana como um valor inalienável; liberalizou a economia e implantou uma economia de mercado; criou as condições e um ambiente favorável à atracção do investimento externo; assumiu a inserção na economia mundial como uma estratégia de desenvolvimento; configurou um sector público assente em valores democráticos e na descentralização do poder; soube, a tempo, em 1998, entrar na nova dinâmica proporcionada pela moeda única europeia ao ancorar a moeda caboverdiana ao euro, através do Acordo de Cooperação Cambial celebrado com Portugal, em 1998 e confirmado pela Decisão do Conselho da União Europeia de 21 de Dezembro de 1998.
O projecto político do MpD – Movimento para a Democracia, partido que ganhou as primeiras eleições multipartidárias e governou o país de 1991 ao ano 2000, aprovado em Novembro de 1990, foi a expressão de um novo paradigma e do rompimento com o regime político e modelo económico vigente durante as décadas de 70 e 80. Alguns princípios fundamentais foram definidos: (1) a finalidade da sociedade consiste no livre desenvolvimento da personalidade de cada ser humano, devendo este sobrepor-se aos demais como último e absoluto; (2) a valorização da vida e da dignidade do indivíduo, sobrepondo-se ao próprio Estado; (3) o direito à diferença e à sua expressão como valores fundamentais; (4) a oposição às tentativas de massificação de indivíduos e de padronização de comportamentos políticos; (5) a valorização do esforço, do mérito, da iniciativa, da criatividade e do risco como condições indispensáveis para o desenvolvimento; (6) a democracia como um valor essencial ao desenvolvimento e a sua realização nas vertentes política, económica, social e cultural; (7) a constituição de um Estado em permanente diálogo e concertação com as comunidades, os operadores e as forças representativas da sociedade; (8) a liberdade económica (nenhum sector deve estar vedado à iniciativa privada); (9) a protecção e a preservação do ambiente como indispensável ao desenvolvimento; (10) o reconhecimento das especificidades das populações das diferentes ilhas e a necessidade de um novo relacionamento institucional que salvaguardem e fomentem a expressão dessas especificidades.
A mudança de paradigma, a partir de 1991, assentou na consideração da Liberdade como um valor, no sentido e alcance que Amartya Sen define na sua obra “Development as Freedom”. A liberdade política, a liberdade económica, a transparência, as oportunidades e protecção sociais, são, segundo Amartya Sen, os pilares que condicionam fortemente o desenvolvimento. Liberdade política, como a possibilidade de o povo determinar, regularmente, sobre quem o governa e com base em que princípios; possibilidade de escolher entre diferentes partidos; liberdade de expressão e de manifestação; acesso a uma imprensa livre e pluralista. Liberdade económica, como a possibilidade e oportunidade de escolha entre consumir, investir, poupar e participar nas trocas e na produção, num ambiente regulado, com concorrência e transparência. Oportunidades sociais no acesso à educação e à saúde, duas áreas fundamentais ao crescimento e ao desenvolvimento económico. Possibilidade de o indivíduo ter condições de ajudar-se a si próprio, progredir socialmente e não ser um mero recipiente da assistência. Possibilidade de o indivíduo ter protecção social de forma a evitar que sejam relegados à situação de objectos ou miseráveis.
O III PND 1992-1995, dizia que “um desenvolvimento económico sem o investimento humano não poderá vingar. O objectivo principal do desenvolvimento humano é de alargar o leque de oportunidades oferecidas às populações e que permitem tornar o desenvolvimento mais democrático e mais participativo”.
Para tal, “três condições devem ser reunidas: viver muito mais tempo e em boa saúde; adquirir um “saber”; ter acesso aos recursos necessários para poder tirar proveito de um nível de vida razoável”. Para além disso, o conceito de desenvolvimento humano abarca também “noções tão capitais como a liberdade política, económica e social, e importantes como a criatividade, a produtividade, o respeito por si e a garantia dos direitos fundamentais”. O PND 1997/2000 acrescenta os conceitos de desenvolvimento sustentado e sustentável, “um modelo de crescimento que se possa auto-alimentar, num quadro de desenvolvimento permanente e sem limite” e que nega todo o desenvolvimento que se baseie no esgotamento dos recursos e que empobreça as gerações vindouras.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Cabo Verde: três décadas de economia à luz da Constituição e da praxis governativa (VI)

Uma economia assistencial e rentista
O perfil de economia rentista e de Estado assistencial que existia desde a época colonial foi aprofundado e enquadrado por um regime político subordinador e cerceador da autonomia da sociedade civil e por um sistema económico que subalternizava a iniciativa privada e desconfiava do investimento estrangeiro. A natureza de financiamento da economia nos inícios dos anos 70 (antes da independência) e na década de 80, era idêntica: subsídios não reembolsáveis, donativos, empréstimos concessionais e remessas de emigrantes. Esta natureza de financiamento de programas de assistência evoluiu para um misto de assistência e desenvolvimento que ainda perdura até hoje com uma importante expressão a nível do Orçamento do Estado e da Balança de Pagamentos.
A não inflexão das tendências da última fase do período colonial e do aprofundamento do assistencialismo e da economia rentista, confirmaram e moldaram uma economia desligada da produção e um Estado que se posiciona e se desenvolve como um agente distribuidor de recursos captados do exterior sob a forma de renda. As principais características da economia cabo-verdiana ainda prevalecem: défice comercial elevado (em média cerca de 40% do PIB); serviços líquidos normalmente positivos mas representando uma pequena fracção desse défice; transferências externas (remessas de emigrantes e ajuda pública ao desenvolvimento) financiando cerca de 2/3 do défice comercial (até 1990, essa cobertura era maior). As transferências contribuem para um PNB e um rendimento disponível mais elevados do que seria assegurado pela produção local da população residente. Funcionam como uma “renda” de que a economia beneficia e que lhe permite o recurso crescente à importação de bens, sem que haja um crescimento correspondente da produção interna. O consumo, particularmente o privado, tem sido o principal responsável pelo crescimento da economia cabo-verdiana. Cabo Verde consome mais do que produz e esta é uma realidade que já vem de várias décadas. Segundo o estudo da SaeR, coordenada pelo Professor Ernâni Lopes, “a variação do consumo, dada a fraqueza da actividade produtiva local, aumenta a solicitação da produção exterior e, por conseguinte, das actividades de comércio e serviços ligadas à importação e comercialização local dos produtos, o que implica que sejam exactamente o consumo (lado da procura) e aqueles dois sectores (lado da produção) os principais responsáveis pelo ritmo de crescimento da economia cabo-verdiana”.
Segundo ainda o estudo da SaeR, o modelo rentista da economia caboverdiana defronta-se com dois tipos de limites importantes relacionados com as fontes de “rendas” do exterior e limites internos do próprio modelo: (1) tendência para a redução no fluxo de emigração, nas remessas de emigrantes e na ajuda ao desenvolvimento, com efeitos sobre o rendimento disponível das famílias e sobre o financiamento do défice público; (2) a quebra das transferências amplia as dificuldades económicas do país por falta de uma base amortecedora interna susceptível de compensar as dificuldades originadas nas relações com o exterior.
Esta é uma realidade que se mantém até ao dia de hoje, apesar de se ter vindo a registar desde a década de noventa, mudanças estruturais na economia com o aumento dos serviços líquidos e o surgimento e expansão do investimento directo estrangeiro, mas numa expressão ainda muito inferior ao peso das transferências. Foi o reconhecimento dessa realidade de dependência de rendas precárias e de elevada vulnerabilidade face aos choques externos que levou à consideração, principalmente a partir de 1995, de que era necessário modificar o modelo de inserção de Cabo Verde na economia internacional.
Uma economia iliberal
Em rigor não se pode falar em liberalização ou abertura económica em finais da década de 80, mais precisamente em 1988, como se pretende algumas vezes apontar. As medidas de flexibilização introduzidas pela revisão constitucional de Dezembro de 1988 foram ambíguas e continuaram essencialmente focalizadas no papel predominante atribuído ao Estado no domínio económico e empresarial.
Quer o quadro constitucional, legal e institucional, quer a praxis governativa, eram de cariz iliberal, até ao final da vigência do regime de partido único: (1) domínio de empresas públicas em praticamente todos os sectores de actividade económica; (2) lei de delimitação de sectores e reserva pública impedindo ou restringindo fortemente a liberdade de acesso aos mercados; (3) fortes restrições à liberdade do comércio através de plafonds de importação, de crédito e cambial; ausência do primado da lei, subalternização da propriedade privada e fraqueza de mecanismos da sua defesa e protecção, não propiciando segurança jurídica e económica aos agentes económicos; (4) ausência de concorrência e de regras de funcionamento dos mercados; (5) total poder de discricionaridade e arbítrio do poder político e da administração do Estado sem sujeição a mecanismos de fiscalização, de “checks and balances” e de “accountability”.
Todos estes factores que resultavam da estrutura do regime político e do seu sistema económico e institucional, obviamente não facultavam condições para a confiança aos investidores e agentes económicos, aumentavam a incerteza no cálculo económico e aumentavam extraordinariamente o risco do país. O ambiente geral não era por isso propício ao empreendedorismo e à atracção do investimento privado, fosse ele nacional ou estrangeiro. Não seriam, pois, as tímidas alterações constitucionais e legais de 1988-89 que poderão conduzir à classificação de abertura económica ou de processo de liberalização quando toda a estrutura de base era manifestamente iliberal.
Os fundamentos de uma economia de mercado – a liberdade, a propriedade privada, o primado da lei, a meritocracia, a regulação, a concorrência e a confiança – para além de estarem ausentes eram negados de jure e de facto.
As consequências sobre o sistema económico são evidentes: debilidade do tecido empresarial e estrangulamentos institucionais ao crescimento económico e ao desenvolvimento provocados por um Estado predatório e patrimonialista. Os efeitos do partido-Estado sobre o sistema económico, social, educacional, cultural, burocrático e da comunicação social foram fortes, estruturantes e prolongados e fazem-se sentir, apesar da mudança de paradigma em 1991, até hoje.

Cabo Verde: três décadas de economia à luz da Constituição e da praxis governativa (V)

Uma economia estatizada

A estatização da economia era uma opção derivada da estrutura ideológica vigente durante o regime de partido único, com enquadramento constitucional e era coerente e consistente com a natureza deste regime. A praxis governativa também foi coerente com essa opção.
A estatização era concretizada através da propriedade estatal sobre um vasto conjunto de sectores de actividade económica e social, da expropriação e nacionalização; da reserva pública sobre determinados sectores; da planificação central e da regulação através de instrumentos não económicos e através de sérias limitações à liberdade económica como a lei de delimitação de sectores que vedava e restringia a intervenção do sector privado na economia, a contingentação e o licenciamento do comércio de importação e o controlo cambial associado às quotas de importação.
Em 1982, os serviços governamentais contribuíram com quase 11% para a formação do PIB e o Sector Empresarial do Estado (SEE) com mais de 37%. No final de 1988, existiam 19 empresas públicas e 14 empresas mistas que representavam um Valor Acrescentado Bruto (VAB) estimado em 16% do PIB, em 1990. O total de emprego assegurado pelo Estado era, em meados da década de 80, de cerca de 50%. Em 1990, o Estado e as Empresas Públicas representavam 59,3% do investimento nacional, o consumo público ascendia a 20% do PIB e o sector público era responsável por 41% do emprego.
As empresas públicas eram ineficientes. Registavam avultados prejuízos, consumiam o grosso do crédito disponível à economia e prestavam serviços de baixa qualidade em todos os sectores. A real dimensão dos problemas do SEE só foi possível determinar aquando das privatizações que ocorreram na década de noventa: 128 milhões de dólares de passivos que tiveram que ser assumidos pelo Estado (Tesouro Público) e 31 milhões de dólares de encargos com a reestruturação das empresas objecto de privatização.
A indústria e a agricultura eram considerados os sectores estratégicos e prioritários da economia. A indústria foi definida como tendo um papel determinante na viabilização da economia cabo-verdiana, devendo caber ao Estado o papel de dinamizador do desenvolvimento industrial como “empresário industrial”, através de empresas públicas e mistas e o exclusivo do acesso aos meios básicos de produção industrial.
O II PND 1986-1990, definiu a indústria como sector de acumulação para o financiamento do desenvolvimento tendo como objectivo primordial, assegurar a viabilidade do conjunto da economia, contribuindo para o equilíbrio das trocas externas, para a exportação e para a resolução do problema do desemprego.
Para tal, cabia ao Estado concentrar a sua acção nos projectos industriais estratégicos (enquanto empresário), devendo, quanto aos projectos induzidos, desempenhar um papel de incitamento e de controlo directo.
Esta opção pela indústria como sector alavanca da economia, subordinada à estratégia de substituição das importações e como reserva do Estado, foi mantida durante toda a década de 80, apesar de o I PND (19821985) ter reconhecido que apenas 40% da capacidade produtiva instalada na altura estava a ser utilizada.
Os resultados dessa opção demonstram o fracasso da via escolhida. O sector considerado estratégico, prioritário, alavanca do crescimento económico e gerador de emprego e de equilíbrio externo, contribuiu apenas com 4% e 6% para o PIB, em 1980 e 1990, respectivamente e com 5% e 7% para o emprego, em 1980 e 1990. As exportações situaram-se a um nível insignificante comparado com o rápido crescimento das importações.
Por outro lado, a estratégia de industrialização pela substituição das importações deixou marcas estruturantes: altas tarifas aduaneiras, restrições administrativas relacionadas com o comércio externo, quer em termos de licenciamentos das importações, quer em termos de controlo cambial, com todos os efeitos sobre o estímulo ao desenvolvimento do comércio informal, do mercado negro e da corrupção, sobre a organização e a competitividade do tecido empresarial e a inflação.
A agricultura era um outro sector definido como prioritário ao qual era atribuído um papel de estabilização do mundo rural e de segurança alimentar.
Estruturou-se assim um sector mantendo a lógica dos programas de “Apoio” da época colonial transformados em “FAIMO”, baseado em investimentos no sector rural orientados para a criação de empregos precários, de fraca produtividade, com vista a garantir um mínimo de rendimento às populações.
Ao Estado era atribuído um papel determinante no sector da agricultura, silvicultura e pecuária. O Programa do Governo para 1986-1990, definiu a agricultura que “emprega 60% dos trabalhadores dos projectos de alta intensidade de mão-de-obra como um sector prioritário”. Manteve-se assim a mesma linha de orientação relativamente a um sector sujeito a elevada carga política, usado como um elemento de forte dependência das populações face ao poder do Estado, apesar de o referido Programa do Governo reconhecer uma situação de degradação da participação do sector no PIB versus os elevados investimentos públicos realizados (32,4% dos investimentos públicos, no 1º quinquénio e 21% no 2º quinquénio), salientando que “os resultados não correspondem ao esforço de investimento realizado pelo Estado”.
A estratégia de estabilização do mundo rural teve efeitos negativos a nível económico, social, cultural e político: conduziu ao aprofundamento de uma relação de dependência face ao emprego público, destruição de um “ethos” de trabalho derivado de um contacto secular com uma terra dura e ingrata, debilidade do capital social, fraca produtividade, elevado êxodo rural, forte dependência da ajuda externa, excessiva carga política na gestão dos investimentos públicos, factores que na sua essência permanecem até aos dias de hoje. Decorridos mais de 30 anos da data da independência, ainda não se conseguiu definir e executar um novo perfil para a agricultura e sua função na economia de um país onde apenas 10% de terras são aráveis e cultiváveis, os solos são de origem vulcânica, pobres em matéria orgânica e com grande sensibilidade à erosão; a pluviosidade é deficitária e aleatória (média de 300 mm) e os recursos hídricos são insuficientes.

Cabo Verde: três décadas de economia à luz da constituição e da praxis governativa (IV)

Características da economia na década de 80
As principais características da economia cabo-verdiana durante toda a década de 80 eram – enquadrados por um quadro ideológico e por uma arquitectura jurídico-institucional – (1) uma economia desintegrada da economia mundial; (2) uma economia estatizada; (3) uma economia assistencial e rentista; (4) uma economia iliberal.
Uma economia desintegrada da economia mundial
A edificação duma economia nacional independente, um objectivo enquadrado “no combate contra a ordem económica (internacional) injusta existente”, teria que avançar mesmo sabendo, como reconhece o próprio PND (1982-85), “que o objectivo não é contudo fácil de se traduzir em objectivos económicos definidos, num mundo cada vez mais marcado por interdependências dos sistemas económicos nacionais”, e que “mais difícil ainda se torna no caso de uma pequena Nação (Cabo Verde) com recursos quase inexistentes”.
Nesse sentido, como constava do Programa do Governo, privilegiavase a orientação para a integração regional e para o intercâmbio entre os Estados da sub-região. As perspectivas a longo prazo (1985-2000), traçadas pelo I PND, apelavam à necessidade de “criação duma capacidade de exportação e de evitar que o aparelho produtivo seja muito sensível às crises e às vicissitudes da actividade económica internacional” e para isso, apontava o caminho do “desenvolvimento de relações económicas preferenciais com os Estados da região (no quadro da CEDEAO e do CILSS) e outros países africanos para concretizar essa política de redução da dependência”. Isto significava uma opção que agravava ainda mais os constrangimentos de uma pequena economia insular como Cabo Verde que, para além de estar distante dos mercados internacionais (em termos de intensidade de relações económicas, custos de transportes e acesso às comunicações), era empurrada para um espaço económico regional pouco dinâmico como é o da África Ocidental.
O objectivo de edificação duma “economia nacional independente”, a par do desenvolvimento e fortalecimento do regime de democracia nacional revolucionária”, foi mantido durante toda a década de 80 como um dos objectivos prioritários afirmados no II Congresso do PAICV e vertidos para o Programa do Governo do período 1986-90.
Se, por um lado, se reconhecia, em meados da década de 80, que a inserção de Cabo Verde na economia mundial é uma exigência (o termo mais usado quer no Programa do Governo (1986-90), quer no I e II PND, é o de inserção na divisão internacional do trabalho), por outro lado, essa inserção era apresentada como uma opção que coloca “múltiplos e delicados problemas”, que exigia uma “escolha rigorosa de parceiros estrangeiros” e que “comportava riscos para a soberania nacional, para a unidade nacional, para a unidade ideológica do Partido, enfim, para o projecto de sociedade”.
O II PND e o Programa do Governo (1986-90) mantiveram a mesma orientação de temor face à inserção do país na economia mundial e ao investimento estrangeiro. No programa do Governo falava-se do importante papel dos capitais (nacional e estrangeiro) para o aproveitamento da vocação geo-económica resultante da posição geográfica do país na encruzilhada das rotas marítimas e aéreas que ligam a África, a Europa e as Américas,
através da produção de serviços. Ao mesmo tempo apontava-se o caminho: “a prioridade da política externa de Cabo Verde continuará a ser a África, em cujo contexto geo-político e económico se envidarão esforços ainda mais sistemáticos de integração.” É via reforço da integração regional que o objectivo da “inserção na divisão internacional do trabalho” deveria fazer-se no sentido de reduzir os riscos face à “perpetuação de potentes mecanismos de dominação dos países do 3º mundo”.
As contradições e indecisões do sistema PAICV quanto à abertura da economia ao investimento estrangeiro, geradas, por um lado, pela necessidade de obtenção de recursos externos para o financiamento da economia e, por outro lado, pelo reconhecimento, tardio, da inadequação da estratégia de industrialização pela substituição de importações, fizeram com que, por motivos ideológicos, Cabo Verde perdesse importantes oportunidades de negócios e de começar muito mais cedo a aposta no desenvolvimento do turismo, que só veio acontecer na década de 90.
Apenas na revisão constitucional de 1988 foi considerada a possibilidade de abertura ao capital estrangeiro, mantendo-se no entanto importantes restrições à intervenção da iniciativa privada na economia impostas pela lei de delimitação de sectores.
Um sector que o Governo considerava ter, na sua óptica, “o papel determinante de viabilização da economia de Cabo Verde”, a indústria, era paradoxalmente mantido como exclusivo do Estado, podendo a iniciativa privada ter acesso aos meios básicos de produção industrial desde que em condições em que o Estado mantenha o controlo societário da empresa.
Esta opção pela economia estatizada, mantida até ao final do regime de partido único, era obviamente incompatível com o desenvolvimento da iniciativa privada, com a atracção de investimento estrangeiro e com qualquer estratégia viável de inserção de Cabo Verde na economia mundial.
Apesar de no Programa do Governo para o período 1986-90 falar-se do aproveitamento da vocação geo-económica do país através da produção de serviços, esse mesmo programa define a agricultura como um sector prioritário e a indústria como determinante para a viabilização da economia cabo-verdiana. A função externa da economia do país com capacidade de inserir na economia mundial não estava definida. O sector dos serviços era largamente dominado pelo comércio de importação e de distribuição no mercado interno; o turismo não tinha expressão; a indústria para além de estar subordinada à estratégia de substituição das importações, era reservada ao Estado como “empresário industrial.
Até ao final da década de 80, Cabo Verde posicionava-se como um país receptor de ajuda pública ao desenvolvimento e de remessas de emigrantes.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Cabo Verde: três décadas de economia à luz da Constituição e da praxis governativa (III)

O caso Botswana
Independente desde 1966, Botswana, um pequeno país africano de 1,6 milhões de habitantes e com uma extensão geográfica de cerca de 600Km2, é considerado um caso exemplar de sucesso. Aquando da independência, era um dos países mais pobres do mundo, com um PIB per capita de 80 dólares (Cabo Verde em 1975 tinha um PIB per capita de 200 dólares). Hoje, é mais competitivo do que o Brasil e o México. O Banco
Mundial considera-o como o país mais favorável aos negócios em todo o continente africano.
Botswana é um país de rendimento médio com um PIB per capita PPP de $10.700, fruto de um crescimento médio real do PIB per capita de 6,4% entre 1960 e 2001, período em que vários países africanos conheceram crescimento médio negativo (Gana, Senegal, Tchad, Zâmbia, Madagáscar, Níger, etc). Entre 1980 e 1990 registou um crescimento médio anual de 10,3% (dobro da taxa de crescimento de Cabo Verde no mesmo período); nas últimas duas décadas tem crescido a uma média dos 7% por ano.
Botswana é o maior produtor de diamantes do mundo (responsável por 35% da produção mundial de diamantes), no entanto, o seu sucesso não é explicado pela sua riqueza mineral. Segundo Henrique Raposo, Investigador do Instituto de Defesa Nacional de Portugal, Botswana “escapou à maldição dos recursos”. A maioria dos países africanos, tão ou mais ricos em matérias-primas e minerais, viram o seu PIB per capita diminuir. É o caso, por exemplo, da Serra Leoa (produtor de diamantes como o
Botswana) e da Nigéria (produtor de petróleo).
O sucesso de Botswana deve-se ao facto de, desde a independência (desde 1966) ter optado por uma democracia constitucional que se casou bem com a cultura tradicional, numa relação de modernidade política com a tradição cultural. Isto foi possível graças à liderança de Seretse Khama, um chefe tribal, advogado, que fundiu a autoridade que essa posição lhe concedia com a legitimidade legal. Botswana optou pelo primado da lei, pela limitação do Estado e pela qualidade das instituições através de uma “burocracia assente na meritocracia, relativamente não corrupta e eficiente”, ao mesmo tempo que “o Governo investiu fortemente na expansão de infraestruturas e num eficiente sistema de acesso à educação e à saúde”. É o país menos corrupto da África. Contrariamente, países ricos em petróleo ou minerais como Iraque, Nigéria, Serra Leoa, Venezuela, República Democrática do Congo, Zâmbia e outros, confirmam a tese que “países ricos em recursos naturais têm instituições fracas derivadas de deficientes mecanismos de checks and balances no controlo do governo, da não observância do primado da lei e da corrupção”. O elemento chave do sucesso de Botswana, segundo Acemoglu, Jonhson e Robinson, referidos por Dani Rodrick na obra In Search of Prosperity, tem a ver com arranjos institucionais que protegeram adequadamente os direitos de propriedade de investidores.
Botswana e Maurícias são os únicos países africanos com uma democracia ininterrupta desde a independência (desde 1965 que o Botswana tem tido eleições multipartidárias). Esta realidade explica em grande parte as diferenças de percurso e de resultados relativamente à maioria dos países africanos, incluindo Cabo Verde.
Ilhas Maurícias
As Maurícias (1,2 milhões de habitantes) obtiveram independência em 1968. Enquanto que Cabo Verde se regia por princípios de “economia nacional independente”, estatizada e planificada, até 1990, Maurícias, já em 1968, decidia pela diversificação da sua economia e implementava políticas de fomento das exportações com a criação de Zonas de Processamento para Exportação (EPZ). De uma economia baseada na indústria do açúcar o país transitou para uma economia onde a manufactura, o turismo, as finanças e a tecnologia desempenham um papel proeminente.
Segundo o relatório do “Economist Intelligence Unit”, Maurícias é o único país africano que integra o grupo das “democracias plenas” (em apenas 28 países do mundo existe democracia plena; 54 constituem “democracias imperfeitas” e 55 são “regimes autoritários”).
Cabo Verde também podia ser excepção?
Os casos do Botswana e das Ilhas Maurícias demonstram que, apesar de a maioria dos países que ascenderam à independência nas décadas de 60 e 70 terem optado por regimes de natureza autoritária e totalitária e por economias inspiradas no modelo soviético, houve excepções. A questão que se coloca é se Cabo Verde podia ser também uma excepção. Cremos que sim. Os factores que diferenciam e explicam o desenvolvimento de uma democracia estável no Botswana desde a sua independência, como população reduzida (não é determinante, mas simplifica a gestão política
em termos demográficos) e a homogeneidade étnica1(facilita a coesão social e permite que esse factor não seja motivo de disputa política) , existiam e existem em Cabo Verde em maior expressão e com ingredientes adicionais como a escolarização e a forte propensão cosmopolita dos caboverdianos.
Cabo Verde é, em África, “um dos raros casos onde existe uma definição étnica, cultural e religiosa, que é resultado de uma homogeneidade da sua identidade nacional e de portanto não existir neste país o problema da definição da Nação que tem impedido em muitos países africanos na própria delineação do Estado”. Estas condições são o resultado de percurso de séculos e obviamente estavam presentes no período da independência do país. Cabo Verde optou por um caminho diferente, o regime autoritário de partido único, por razões de legitimidade histórica.

Cabo Verde: três décadas de economia à luz da Constituição e da praxis governativa (II)

A Constituição Económica de 1980
A Constituição de 1980 adopta o conceito de “economia nacional independente”, em voga nos anos 60 e 70 e assume-o como um dos deveres do Estado, numa pequena economia insular e numa cultura aberta ao mundo como Cabo Verde. A realidade é que nem Cabo Verde tinha condições para ambicionar ser um país de desenvolvimento auto-centrado e nem seria essa a via mais correcta. No começo dos anos 80 “já eram conhecidos os impasses a que tinham conduzido as diferentes estratégias introvertidas
nos países em desenvolvimento, além de que se viviam já os debates sobre a crise do paradigma do desenvolvimento e sobre as novas posições introduzidas pelos economistas neoliberais”. Vários estudos do Banco Mundial e de outras instituições mostram que “países mais integrados na economia mundial cresceram mais do que os não globalizados”.
O Estado deve promover o desenvolvimento económico e controlar os sectores básicos da economia, como fundamento do progresso social, assim ditava a alínea e) do artigo 10º da Constituição de 1980. Para além disso, dispunha o nº 2 do artigo 11º da Constituição que, “São propriedade do Estado o subsolo, as águas, as riquezas minerais, as principais fontes de energia, os meios básicos de produção industrial, os meios de informação e comunicação, os bancos, os seguros, as infra-estruturas e os meios fundamentais de transporte”. Dizia ainda a Constituição que o “Estado controla o comércio externo e detém o monopólio das operações com ouro e divisas”. Estes princípios consagrados na Constituição dizem tudo sobre a estatização da economia,sendo a propriedade estatal constitucionalmente declarada como sector dominante da economia, em contraponto com a propriedade privada e a propriedade cooperativa.
A opção por uma economia estatizada e planificada, inspirada no modelo soviético, não podia ser mais clara, apesar de algumas incongruências que resultavam da sua aplicação à realidade de um país como Cabo Verde, como é o caso de o Estado reservar “meios básicos de produção industrial” numa economia em que a indústria representava cerca de 5% do PIB e o dever de construir uma “economia nacional independente” num pequeno estado insular, marcado pela diáspora, de formação e aspiração cosmopolita e que desempenhou uma função histórica de prestação de serviços.
A praxis governativa
O 1º Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) 1982-1985 traduzia bem os princípios consagrados na Constituição de 80. Dispunha que “(…) a nossa economia exige uma planificação rigorosa, orientada segundo o princípio do centralismo democrático. (…) o Estado terá que desempenhar um papel determinante em todos os domínios (…) o sector produtivo estatal ocupará uma posição posição dominante na economia (…) para assegurar o desenvolvimento económico na via dos objectivos programáticos do Partido”. Para isso, “(…) basta que o Estado controle os sectores básicos e as variáveis económicas estratégicas.”
Praticamente todas as esferas de actividade económica foram dominadas pelo Estado: da agricultura, ao comércio de importação e a grosso, nalguns casos o comércio a retalho, passando pela indústria ligeira, a energia, a pesca, os transportes e comunicações, o sistema financeiro, a prestação de serviços diversos, a imprensa, a construção, hotelaria, etc.
No sector financeiro, o Estado tinha o exclusivo de toda a actividade bancária e seguradora. O sistema mono bancário permaneceu até 1994. O Estado, através do Banco de Cabo Verde assumia em exclusivo as funções de banco central e de banca comercial, já que a Caixa Económica não podia ser, com propriedade, considerada como um banco. O mesmo figurino vigorou para o sector segurador até 1991-92.
No sector da energia, a criação da Electra, a partir da Empresa de Electricidade e Água do Mindelo e da Central da Praia, veio consagrar o monopólio da produção e distribuição de electricidade pelo Estado. Mas, em contrapartida, no sector da comercialização de combustíveis, o Estado esteve sempre em “minoria”, já que este ramo de actividade foi sempre dominado pela Shell, empresa estrangeira. A criação da Enacol em 1981-82 veio consagrar a presença do Estado neste ramo estratégico da economia.
No sector de transportes e comunicações, o Estado manteve domínio total sobre os correios, telecomunicações, transportes aéreos, e uma presença dominante no transporte marítimo de longo curso, ainda que neste caso, bem como no transporte marítimo de cabotagem, o sector privado estivesse presente.
No que concerne à imprensa, o Estado manteve o exclusivo das actividades de radiodifusão, televisão, agência noticiosa e imprensa escrita.
Em 1986, através da Lei nº 10/86, o Estado reafirmou o seu exclusivo sobre essas áreas, e sobre outros meios de informação e comunicação declarados por lei, deixando, porém, uma pequena janela entreaberta onde entraria o jornal Terra Nova.
No sector industrial, o Estado cumpriu a promessa implícita na Constituição.
A estratégia de desenvolvimento industrial baseou-se num forte intervencionismo do Estado e na substituição de importações, um modelo auto-centrado, esgotado a nível de vários países desde o final da década de 70. Quando as tendências da economia mundial eram para a abertura comercial e promoção das exportações, Cabo Verde optava, em coerência com o desígnio constitucional de construir uma “economia nacional independente”, por um projecto de desenvolvimento virado para dentro, para o mercado local, como bem reflectia a política de substituição das importações.
A presença do Estado fez-se sentir nas indústrias de confecções, calçado, avicultura, metalomecânica, moagem, agro indústria, tintas, reparação naval, conservação do pescado, etc.
Na agricultura, foram nacionalizadas terras de proprietários absentistas, depois repartidas pela reforma agrária; algumas dessas propriedades foram transformadas em empresas estatais (Justino Lopes). Nas pescas, o Estado criou a Pescave que tinha uma posição dominante na pesca industrial, e a Interbase, com exclusivo de armazenagem do pescado. No entanto, globalmente, tanto na agricultura como nas pescas, a iniciativa privada manteve sempre a sua predominância.
No ramo de construções, excluindo a autoconstrução, o Estado tinha uma posição dominante, não só através das empresas estatais do sector, EMEC e MAC, mas igualmente pela via do Ministério das Obras Públicas, que realizava directamente as obras do Estado através das suas direcções regionais.
O Estado manteve um forte controle do comércio externo e a grosso, ainda que o sector privado tivesse alguma margem de manobra. A legislação que regulava o sector foi publicada em 1985 (Lei nº 135/85), tendo codificado práticas anteriores a 1980, no concernente a licenciamento prévio das importações, plafonds, controle cambial, e reserva pública de certas áreas, como sejam a importação de produtos alimentares de primeira necessidade, materiais de construção e medicamentos. O Estado acabou por
intervir também no comércio de retalho de certos produtos, ainda que o essencial se tenha mantido no sector privado.
Quanto ao investimento externo, ele é meramente “tolerado” pela Constituição de 80 que diz que “o Estado pode autorizar o investimento de capital estrangeiro desde que seja útil ao desenvolvimento económico e social do país”. A possibilidade de abertura ao capital estrangeiro considerada na revisão Constitucional de 1988, ficou letra morta. Em 1990, o único investimento estrangeiro digno de nota era a Shell, empresa que actua em Cabo Verde desde o início do século vinte, e que deu continuidade às suas actividades depois da Independência e a Ceris (empresa mista).
Em finais do decénio de 80, mais precisamente nos anos 1988 e 1989, observa-se um tímido movimento de flexibilização de alguns aspectos mais restritivos do sistema económico da Constituição de 80. A revisão Constitucional de 1988 teve esse propósito específico (Lei constitucional nº 1/88 de 17 de Dezembro).
A revisão retirou os bancos e seguros da lista de propriedade exclusiva do Estado, o mesmo acontecendo com as principais fontes de energia. O monopólio do Estado sobre as operações de divisas foi igualmente retirado.
Essa revisão constitucional visava sobretudo permitir a aprovação de legislação sobre instituições financeiras internacionais, que acabou por não ter consequências práticas até meados da década de noventa.
Na sequência da revisão constitucional, foi aprovada a lei de delimitação de sectores (Lei nº 52/89 de 13 de Junho), que consagra essa tímida abertura, mantendo, porém, várias restrições à intervenção do sector privado na economia. Assim, as actividades bancária e seguradora, deixaram de ser exclusivo do Estado e matéria regulada por via constitucional, passando a ser reguladas por lei ordinária. Esta iniciativa não teve consequências até 1991 para os seguros, e 1994-95 para a banca.
Além disso, apesar da revisão constitucional ter mantido o exclusivo do Estado para os meios básicos de produção industrial, a lei de delimitação de sectores abriu a possibilidade de acesso da iniciativa privada a um conjunto de sectores, desde que em associação com pessoas colectivas públicas, mas sempre em posição que garantia a estas o controlo da empresa.
Manteve-se, assim, o estatuto de menoridade da iniciativa privada. O mesmo diploma vedou expressamente ao sector privado algumas áreas de actividade, nomeadamente, recursos hídricos, distribuição de energia eléctrica, serviços postal e rede básica de telecomunicações, exploração de portos e aeroportos, deixando em aberto a possibilidade de exercício de algumas dessas actividades ao sector privado, quando razões ponderosas de interesse publico o aconselhassem.
A planificação da economia, uma exigência constitucional, foi vertida em lei (Lei nº 52/85) e traduzida em Planos Nacionais de Desenvolvimento, que ainda hoje são produzidos, mas com carácter indicativo e facultativo.
A Lei nº 52/85 declarava, em sintonia com o imperativo constitucional, que o PND era imperativo para o sector público e orientador para o sector privado. O Programa do Partido (PAICV), citado no I PND (198285), indicava que a planificação é “orientada segundo o princípio do centralismo democrático”.
Em suma, o modelo de economia efectivamente implantado até 1990, corresponde, grosso modo, ao modelo desenhado na Constituição de 1980, ou seja, uma economia que nega o princípio da liberdade económica, estatizada, de planeamento central e regulada por instrumentos directos não económicos ao nível do abastecimento do mercado, do investimento, do emprego e da política monetária e cambial.
Em finais do decénio, nota-se uma tímida abertura em relação à iniciativa privada, nacional e estrangeira, mas sem consequências dignas de registo, na prática e muito distante de uma economia de mercado e de um quadro institucional promotor da iniciativa privada.